segunda-feira, 30 de novembro de 2020

ONG leva banheiros secos ao nordeste brasileiro

 

ONG leva banheiros secos ao nordeste brasileiro
uardar no Meu ArchDaily

De acordo com a Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento de 2018, 25,8% da população nordestina não têm acesso à água e 72% dos nordestinos não têm acesso à rede de esgoto. “Agora me diz, como eu faço pra ter um banheiro em casa nessas condições?”. Essa era a pergunta que tirava o sono e a tranquilidade de Vera.

Vera mora na pequena comunidade de Riacho das Almas (PE) e sua história se assemelha a de milhares de famílias que vivem na zona rural do semiárido nordestino. Onde o acesso a água é escasso e o esgotamento sanitário é praticamente inexistente, o uso de banheiros tradicionais, com torneira, chuveiro e descarga d’água, é incomum na região. Por conta disso, famílias como a de Vera e tantas outras utilizam espaços improvisados ao ar livre para suas necessidades: o banheiro de aveloz.

Estes espaços impõem risco de contágio de doenças, fornecem pouca privacidade e colocam mulheres e crianças em situação de desconforto e risco de violência sexual. Espaços como esses podem ser compartilhados por até seis famílias. Além disso, como não existe fossa, fezes e urina permanecem expostas proliferando doenças e poluindo o meio ambiente.

Era arriscado, né? A gente ficava com medo de violência, era muito exposto. Também ficava preocupada se não tinha algum bicho por perto. O pior era ver meus filhos saírem a noite no escuro quando precisavam usar o banheiro.

Cortesia de Habitat para Humanidade Brasil
Cortesia de Habitat para Humanidade Brasil

Banheiros secos

Buscando solucionar essa problemática, a organização social Habitat para a Humanidade Brasil desenvolveu um projeto piloto de instalação de uma tecnologia revolucionária para a região. Em 2019, 16 famílias do semiárido pernambucano foram beneficiadas com a instalação de banheiros secos, que não utilizam água e não poluem o meio ambiente.

Após um ano utilizando o banheiro, Vera acredita que sua vida mudou muito. “Sou outra pessoa, não sou mais aquela Vera preocupada. Esse banheiro fez muita diferença: é mais simples de usar do que eu imaginava, é limpo, fica sempre cheiroso, é livre de bactérias, é mais confortável e tem paredes de verdade! Eu me sinto muito mais segura de deixar meus filhos usarem esse banheiro e também fico mais tranquila de saber que não estamos nos expondo a doenças”.

Após a instalação dos 16 banheiros, a organização deu início a um acompanhamento junto a essas famílias para garantir o uso adequado e avaliar de perto os reais impactos dessa tecnologia. 

“Ainda estamos em fase de sistematização dos resultados do primeiro ano do projeto. Uma série de reuniões com representantes do setor público e privado estão sendo promovidas e o relatório final será lançado em janeiro”, relata Mohema Rolim, Gerente de Programas da Habitat para a Humanidade Brasil e responsável pelo projeto.

Podemos afirmar que os 16 banheiros seguem em pleno funcionamento e que, de acordo com as famílias, a situação de higiene melhorou. Houve uma boa aceitação quanto ao uso, inclusive por parte das crianças. Houve ainda redução do número de vezes que integrantes da família foram acometidos de diarreia. – Mohema Rolim

Os banheiros secos foram criados pela empresa alemã 3P Technik e trazidos para o Brasil pela organização. O objetivo é utilizar este piloto para aumentar a eficiência e eficácia da solução e levá-la a mais famílias que sofrem com a falta de acesso à água e saneamento. 

Cortesia de Habitat para Humanidade Brasil
Cortesia de Habitat para Humanidade Brasil

Acreditamos que esse tipo de tecnologia pode ser grande aliada na convivência com o semiárido e esperamos que essa experiência possa ser replicada em larga escala. – Mohema Rolim

Habitat para a Humanidade Brasil

Habitat para a Humanidade Brasil começou a atuar no país em 1992, motivados pela visão de que toda pessoa merece um lugar digno para viver. Desde então, já desenvolveu projetos sociais em 11 estados e apoiou mais de 87 mil pessoas na construção ou melhoria de suas casas, assim como no acesso à água potável em regiões de seca. A organização atua em espaços democráticos para propor e incidir por políticas públicas de acesso à moradia.

Além disso, promove capacitações para fortalecimento de mulheres, jovens, lideranças e comunidades e, através de ações de voluntariado e mobilização, busca envolver a sociedade na luta pelo direito à moradia adequada. Fazemos parte da rede global Habitat for Humanity, presente em mais de 70 países.

Via CicloVivo.

O que podemos aprender com a arquitetura indígena?

 

O que podemos aprender com a arquitetura indígena?

Arquitetas, arquitetos, urbanistas e estudantes da área têm muito a aprender com os modelos construtivos dos primeiros ocupantes do território brasileiro, que há muito tempo produzem abrigos adaptados ao contexto local. Estabelecer um conjunto de características comuns às soluções arquitetônicas indígenas se mostra uma abordagem muito superficial, já que as conformações e dimensões das ocas ou malocas indígenas variam a depender da tribo e quantidade de pessoas que habitam ali. Porém, ao estudar os diferentes exemplares da arquitetura indígena, é possível rever a noção de “tecnologia avançada” e assimilar soluções sustentáveis e adaptadas às condições ambientais.

Centro Sebrae de Sustentabilidade / José Afonso Portocarrero. Cortesia de CAU/BRCampus da Universidade do Amazonas, 1970-1980. Imagem © Severiano PortoCobertura do Instituto Socioambiental - ISA / Brasil Arquitetura. © Daniel DucciARCA / Atelier Marko Brajovic. © Victor Affaro+ 6




Desde a invasão dos portugueses no Brasil, a colonização impôs parâmetros que se refletem até hoje na forma de construir, habitar e analisar a arquitetura. A relação colônia/colonizado, ou centro/margem persiste também no sentido que a ideia de tecnologia avançada ainda é entendida como aquela high tech, ou seja, baseada em um ideal progressista e universal. Mas o que deve ser entendido, sobretudo nos países latino-americanos, como tecnologia avançada? A arquiteta argentina Marina Waisman, em seu livro “O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de latino-americanos”, além de responder à essa pergunta, argumenta sobre a necessidade de se discutir uma historiografia latino-americana e reflete sobre os conceitos de centro, periferia e região, fazendo uma análise de como alguns vocábulos devem ser revistos quando aplicados na América Latina.

“Em uma primeira aproximação pode-se dizer que tecnologia avançada é aquela que permite, com base em recursos humanos e materiais acessíveis, alcançar, mediante seu aperfeiçoamento e desenvolvimento, o mais alto grau de produtividade para conseguir um habitat adequado para cada região e seus modos de vida, tanto em qualidade como em quantidade” - Marina Waisman

Construção de maloca da comunidade Xinguano Kuikuro. Imagem © CC BY-SA 4.0
Construção de maloca da comunidade Xinguano Kuikuro. Imagem © CC BY-SA 4.0

No Mato Grosso, o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Tecnologias Indígenas, Tecnoíndia, atua desde 2007 com o objetivo de organizar, manter e ampliar o acervo documental de bens materiais e imateriais indígenas, como fonte para trabalhos de pesquisa, extensão e projeto. O núcleo, criado pelos professores Maria Fátima Roberto Machado, antropóloga, e José Afonso Botura Portocarrero, arquiteto, busca, através da multidisciplinaridade, superar as visões tecnológicas e estéticas exógenas e hegemônicas, realidade presente no contexto brasileiro, sobretudo naqueles lugares onde a memória indígena foi quase completamente apagada.

Centro Sebrae de Sustentabilidade (CSS), projetado pelo arquiteto José Afonso Portocarrero, é um exemplo da forma que os estudos sobre tecnologias construtivas indígenas podem ser adotadas na produção arquitetônica contemporânea. Em 2018 o edifício ganhou o prêmio de Melhor Edifício Sustentável das Américas, o BREEAM Awards, além de outros prêmios de sustentabilidade, como o Procel Edifica (2013) e o GBC Brasil Zero Energy (2017). Sua cobertura, conformada por duas cascas de concreto espaçadas entre si permite a existência de um colchão de ar que mantém o interior da edificação a uma temperatura agradável. A tecnologia foi inspirada nas construções indígenas formadas por várias camadas de palha, que também permitem o conforto térmico através da formação de camadas de ar entre elas.

Centro Sebrae de Sustentabilidade / José Afonso Portocarrero. Cortesia de CAU/BR
Centro Sebrae de Sustentabilidade / José Afonso Portocarrero. Cortesia de CAU/BR

As habitações indígenas podem influenciar a produção arquitetônica brasileira contemporânea de diversas formas, desde uso de técnicas construtivas que são passadas entre gerações, até releituras das formas das casas para proporcionar conforto térmico e praticidade estrutural. A construção do Instituto Socioambiental - ISA em São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, projeto do escritório Brasil Arquitetura, contou com mão de obra indígena na execução da cobertura de madeira, palha e cipós, e da estrutura periférica de 1,50m de largura que “veste” a construção central. Outro exemplo é a casa ARCA, do Atelier Marko Brajovic, que possui uma forma inspirada na casa indígena da tribo Asurini (Médio Xingu), com estrutura autoportante em formato de concha, solucionando com o mesmo elemento o telhado, as paredes e acabamentos.

Cobertura do Instituto Socioambiental - ISA / Brasil Arquitetura. © Daniel Ducci
Cobertura do Instituto Socioambiental - ISA / Brasil Arquitetura. © Daniel Ducci
ARCA / Atelier Marko Brajovic. © Victor Affaro
ARCA / Atelier Marko Brajovic. © Victor Affaro

Nos anos 80, a chamada “arquitetura regionalista” ganhou destaque com a publicação “Towards a critical regionalism: six points for an architecture of resistance”, de Kenneth Frampton. A publicação lança diretrizes para uma “arquitetura de resistência” que concilia princípios modernistas a aspectos regionais, como técnicas construtivas, materiais e adaptabilidade ao clima. No Brasil, a produção dos anos 60 aos anos 80 do arquiteto Severiano Porto é considerada por alguns autores exemplo dessa abordagem por tirar partido do conhecimento pré-existente para aplicá-lo às novas condições, a exemplo do Campus da Universidade do Amazonas (1970-1980).

Campus da Universidade do Amazonas, 1970-1980. Imagem © Severiano Porto
Campus da Universidade do Amazonas, 1970-1980. Imagem © Severiano Porto

Em tempos nos quais a sustentabilidade está no foco de discussões de como enfrentar questões climáticas e ambientais, voltar o olhar a práticas vernaculares pode ser uma forma de aprender como lidar com estas questões de uma maneira diversa. A partir do entendimento que tecnologia avançada é algo que vai além de soluções inovadoras universalizantes - muitas vezes importadas de outros contextos -, é possível adotar práticas projetuais baseadas na arquitetura indígena como forma de responder a demandas contemporâneas, conciliando adaptabilidade ao contexto, interlocução com a comunidade e materiais e técnicas construtivas locais. 

Referências bibliográficas
CAU/RN. “Arquitetura Indígena no Brasil”. Acessado 24 Out 2019 <https://www.caurn.gov.br/?p=10213>.
HESPANHA, Sérgio Augusto Menezes. “Severiano Porto. Entre o regional e o moderno”. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 105.05, Vitruvius, fev. 2009. Acessado 24 Out 2019 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.105/76>.
PORTOCARRERO, José Afonso Botura. “Tecnologia indígena em Mato Grosso: habitação”. 2. ed. Cuiabá: entrelinhas, 2018.
WAISMAN, Marina. “O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de latino-americanos”. São Paulo, SP: Perspectiva, 2019.

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