O que podemos aprender com a arquitetura indígena?
Arquitetas, arquitetos, urbanistas e estudantes da área têm muito a aprender com os modelos construtivos dos primeiros ocupantes do território brasileiro, que há muito tempo produzem abrigos adaptados ao contexto local. Estabelecer um conjunto de características comuns às soluções arquitetônicas indígenas se mostra uma abordagem muito superficial, já que as conformações e dimensões das ocas ou malocas indígenas variam a depender da tribo e quantidade de pessoas que habitam ali. Porém, ao estudar os diferentes exemplares da arquitetura indígena, é possível rever a noção de “tecnologia avançada” e assimilar soluções sustentáveis e adaptadas às condições ambientais.
Desde a invasão dos portugueses no Brasil, a colonização impôs parâmetros que se refletem até hoje na forma de construir, habitar e analisar a arquitetura. A relação colônia/colonizado, ou centro/margem persiste também no sentido que a ideia de tecnologia avançada ainda é entendida como aquela high tech, ou seja, baseada em um ideal progressista e universal. Mas o que deve ser entendido, sobretudo nos países latino-americanos, como tecnologia avançada? A arquiteta argentina Marina Waisman, em seu livro “O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de latino-americanos”, além de responder à essa pergunta, argumenta sobre a necessidade de se discutir uma historiografia latino-americana e reflete sobre os conceitos de centro, periferia e região, fazendo uma análise de como alguns vocábulos devem ser revistos quando aplicados na América Latina.
“Em uma primeira aproximação pode-se dizer que tecnologia avançada é aquela que permite, com base em recursos humanos e materiais acessíveis, alcançar, mediante seu aperfeiçoamento e desenvolvimento, o mais alto grau de produtividade para conseguir um habitat adequado para cada região e seus modos de vida, tanto em qualidade como em quantidade” - Marina Waisman
No Mato Grosso, o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Tecnologias Indígenas, Tecnoíndia, atua desde 2007 com o objetivo de organizar, manter e ampliar o acervo documental de bens materiais e imateriais indígenas, como fonte para trabalhos de pesquisa, extensão e projeto. O núcleo, criado pelos professores Maria Fátima Roberto Machado, antropóloga, e José Afonso Botura Portocarrero, arquiteto, busca, através da multidisciplinaridade, superar as visões tecnológicas e estéticas exógenas e hegemônicas, realidade presente no contexto brasileiro, sobretudo naqueles lugares onde a memória indígena foi quase completamente apagada.
O Centro Sebrae de Sustentabilidade (CSS), projetado pelo arquiteto José Afonso Portocarrero, é um exemplo da forma que os estudos sobre tecnologias construtivas indígenas podem ser adotadas na produção arquitetônica contemporânea. Em 2018 o edifício ganhou o prêmio de Melhor Edifício Sustentável das Américas, o BREEAM Awards, além de outros prêmios de sustentabilidade, como o Procel Edifica (2013) e o GBC Brasil Zero Energy (2017). Sua cobertura, conformada por duas cascas de concreto espaçadas entre si permite a existência de um colchão de ar que mantém o interior da edificação a uma temperatura agradável. A tecnologia foi inspirada nas construções indígenas formadas por várias camadas de palha, que também permitem o conforto térmico através da formação de camadas de ar entre elas.
As habitações indígenas podem influenciar a produção arquitetônica brasileira contemporânea de diversas formas, desde uso de técnicas construtivas que são passadas entre gerações, até releituras das formas das casas para proporcionar conforto térmico e praticidade estrutural. A construção do Instituto Socioambiental - ISA em São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, projeto do escritório Brasil Arquitetura, contou com mão de obra indígena na execução da cobertura de madeira, palha e cipós, e da estrutura periférica de 1,50m de largura que “veste” a construção central. Outro exemplo é a casa ARCA, do Atelier Marko Brajovic, que possui uma forma inspirada na casa indígena da tribo Asurini (Médio Xingu), com estrutura autoportante em formato de concha, solucionando com o mesmo elemento o telhado, as paredes e acabamentos.
Nos anos 80, a chamada “arquitetura regionalista” ganhou destaque com a publicação “Towards a critical regionalism: six points for an architecture of resistance”, de Kenneth Frampton. A publicação lança diretrizes para uma “arquitetura de resistência” que concilia princípios modernistas a aspectos regionais, como técnicas construtivas, materiais e adaptabilidade ao clima. No Brasil, a produção dos anos 60 aos anos 80 do arquiteto Severiano Porto é considerada por alguns autores exemplo dessa abordagem por tirar partido do conhecimento pré-existente para aplicá-lo às novas condições, a exemplo do Campus da Universidade do Amazonas (1970-1980).
Em tempos nos quais a sustentabilidade está no foco de discussões de como enfrentar questões climáticas e ambientais, voltar o olhar a práticas vernaculares pode ser uma forma de aprender como lidar com estas questões de uma maneira diversa. A partir do entendimento que tecnologia avançada é algo que vai além de soluções inovadoras universalizantes - muitas vezes importadas de outros contextos -, é possível adotar práticas projetuais baseadas na arquitetura indígena como forma de responder a demandas contemporâneas, conciliando adaptabilidade ao contexto, interlocução com a comunidade e materiais e técnicas construtivas locais.
Referências bibliográficas
CAU/RN. “Arquitetura Indígena no Brasil”. Acessado 24 Out 2019 <https://www.caurn.gov.br/?p=10213>.
HESPANHA, Sérgio Augusto Menezes. “Severiano Porto. Entre o regional e o moderno”. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 105.05, Vitruvius, fev. 2009. Acessado 24 Out 2019 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.105/76>.
PORTOCARRERO, José Afonso Botura. “Tecnologia indígena em Mato Grosso: habitação”. 2. ed. Cuiabá: entrelinhas, 2018.
WAISMAN, Marina. “O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de latino-americanos”. São Paulo, SP: Perspectiva, 2019.
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